Publicada em 03/07/2020

Psicanalista José Carlos Calich aborda os impactos na saúde mental causados pela pandemia

Presidente da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre participou de Live promovida pela FaSaúde/Grupo IAHCS.

 

A pandemia do coronavírus trouxe uma série de desafios para os sistems de saúde de todo o mundo. A nova realidade imposta pela Covid-19 também alterou significativamente a rotina das pessoas, trazendo à tona sentimentos de angústia e medo, afetando significativamente a saúde mental.

Para abordar o tema, a Faculdade de Tecnologia em Saúde (FaSaúde/Grupo IAHCS) promoveu a Live Saúde Mental em Tempos de Pandemia, com a presença do presidente da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, psicanalista José Carlos Calich. A transmissão foi comandada pelo coordenador de pós-graduação da FaSaúde/IAHCS, doutor em epidemiologia, professor Paulo Petry.

 

Pandemia representa uma quebra da nossa onipotência

José Carlos Calich destacou que a atual pandemia não representa uma novidade, pois a humanidade convive há séculos com elas. Segundo o especialista, os vírus estão presentes na Terra bilhões de anos antes da humanidade. Mas a velocidade e a facilidade de se infectar é, segundo Calich, um cenário inédito pelo qual não esperávamos.

O psicanalista ressaltou que a humanidade tem uma falsa ilusão de que domina a natureza, mas os fatos recentes (além da pandemia, a nuvem de gafanhotos e o ciclone que atemorizaram o Sul do Brasil) reforçam a vulnerabilidade do ser humano na sua relação com a natureza.

O cenrário inédito trouxe uma quebra da onipotência, de acordo com Calich. "Em termos psicanalíticos, isso representa uma quebra da onipotência, uma quebra da sensação de que nós, com nosso suposto poder, vamos combater tudo e viver uma vida sem sofrimentos, dores, obstáculos, e que nossa inteligência vai fazer com que a gente vença qualquer coisa. Então, fomos feridos. Estamos tendo que enfrentar uma coisa que não sabemos quase nada sobre ela", afirmou.

O custo emocional é muito grande e as dificuldades de enfrentar a pandemia são complexas, de acordo com o psicanalista, e as consequências são agravadas pela dificuldade de encarar os problemas, inerentes na sociedade. "Nós nos constituímos de uma forma a tentar diminuir o tamanho dos problemas. Reduzimos complexidades, dificuldades, o tamanho das coisas. Quando falamos que um sistema é complexo, queremos dizer que há muitas variáveis envolvida, muitas das quais não conhecemos. Hoje em dia, reduzimos os problemas complexos de forma binária: sou a favor ou contra, odeio ou amo. Acabamos não estando preparados para problemas complexos, de dimensões pandêmicas, que não temos soluções ainda e nem sabemos quando teremos", afirmou.

Calich ressaltou que algumas pessoas não estão preparadas para enfrentar problemas para as quais não há solução imediata e acabam tendo alguns "adoecimentos", de negação da realidade e diminuição de problemas. "São recursos que ao invés de nos aliviar, acabam nos atrapalhando. Por isso chamei de adoecimento", disse o psicanalista, citando como exemplo as atitudes imprudentes de pessoas que negam o problema e não tomam medidas de proteção adequadas (como distanciamento social e uso de máscara), trazendo como consequência o aumento de casos de Covid-19. Ele também destacou que, por outro lado, uma situação de angústia muito grande também é prejudicial, com uma preocupação exagerada com a contaminação de pessoas que estão tomando as medidas adequadas de distanciamento.

 

Cansaço do confinamento

O psicanalista também abordou a diminuição do confinamento observado ao longo dos meses de pandemia, consequência do cansaço do confinamento, que trazem um sofrimento emocional, e também de negação do problema, como mencionado anteriormente.

"Muitos dizem que é uma medida medieval. De fato, é, mas é a melhor solução no momento", disse. Calich salientou que, apesar do número menor de óbitos no RS comparado com outros locais do Brasil, devido ao sistema de saúde qualificado nos sistemas privado e público, não pode fazer com que a gravidade da doença seja diminuída.

 

Morte solitária pela Covid-19 trazem custo emocional elevado

A dor e o momento de luto causados pela Covid-19 são ainda mais difíceis do que o normal, pelas dificuldades impostas. "Não participar da cerimônia de despedida traz um sofrimento ainda maior e que pode durar anos. Além disso, há um grande sofrimento de não poder estar perto de algum ente querido em estado grave. Isso é muito duro e tem um curso emocional que pode durar muitos anos", afirmou.

 

Agressões familiares: angústia ainda maior em tempos de pandemia

De acordo com o psicanalista, há um mecanismo de "jogar a angústia para algum lugar", criando escapes para o desestresse pessoal, como prática de esportes, trabalho fora de casa e demais atividades externas. A pandemia traz um problema sobre esse comportamento, por cortar possibilidades de muitas atividades costumeiramente realizadas, causando muitos problemas familiares.

"O número de famílias que vivem harmonicamente é menor do que as que vivem com problemas. Trancar essas pessoas por muito tempo e há aumento da angústia, de bebida alcoólica, problema com os filhos, e vem a onipotência: ’eu que mando aqui’ e começa a pauleira, literalmente, verbal e física", ressaltou Calich, ao falar sobre agressões verbais e físicas mais facilmente observadas em famílias em confinamento.

 

Sofrimento para profissionais de saúde

Calich disse que a angústia e a carga emocional é maior nos profissionais de linha de frente, que lidam diariamente com muitos casos de pessoas doentes e com grande risco de contaminação. "Podem contaminar os familiares, e há uma angústia de ficar isolados, por meses, para não contaminá-los. Também há a angústia de que os colegas de profissão podem adoecer e morrer, e isso vai criando uma situação de uma angústia que transborda. Além disso, há outros recursos mentais que são complexos: começamos a achar que não deveríamos estar lá [em hospitais]. ’Por que estou aqui?’ ’Por que tenho que me expor aqui enquanto outras pessoas estão em casa, não estão expostas como estou?’. Muitos podem se indignar e viram o fio. Os profissionais de saúde da linha de frente são as pessoas que mais sofrem com esse momento. São heróis mesmo", salientou.

 

Projeto Atendimento Solidário

Calich explicou como foi desenvolvido o projeto Atendimento Solidário em Porto Alegre, para oferecer atendimentos voluntários para pessoas com necessidade de conversar sobre a angústia provocada pela Covid-19.

O projeto tem participação de 14 instituições ligadas à saúde mental de Porto Alegre (que incluem UFRGS e PUC-RS, além de instituições de psicanálise, psicoterapia e psiquiatria). O acolhimento feito pelo Atendimento Solidário, que conta com 800 profissionais voluntários, acontece em duas consultas telefônicas - após as duas consultas, os profissionais podem encaminhar o participante para algum tratamento de saúde mental específico. Para participar, os interessados devem preencher um formulário - após o envio, o projeto irá entrar em contato telefônico. 

 

Próxima live

A próxima edição terá como convidado diretor administrativo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Jorge Bajerski. O evento ocorre no dia 08 de julho, quarta-feira, às 19h, novamente pelo Instagram do professor Paulo Petry (@prof_paulo_petry).

Os debates têm o apoio da Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Saúde do Rio Grande do Sul (FEHOSUL), Associação dos Hospitais do RS (AHRGS), Instituto de Acreditação Hospitalar e Ciências da Saúde (IAHCS Acreditação), Sindicato dos Hospitais e Clínicas de Porto Alegre (Sindihospa) e Portal Setor Saúde.